Viúva, com quatro filhos para criar, Jacinta Mendes, que se autodenominou Cíntia, foi à luta e não se rendeu às estatísticas, que mostram as mulheres chefes de família condenadas à pobreza (Ed Alves/Esp. CB/D.A Press)
Viúva, com quatro filhos para criar, Jacinta Mendes, que se autodenominou Cíntia, foi à luta e não se rendeu às estatísticas, que mostram as mulheres chefes de família condenadas à pobreza

Jacinta Mendes Nina, que cresceu como Cíntia, estava com 27 anos e sozinha com seus dois filhos — uma menina de quatro anos e um menino de dois — em uma casa em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, a 1.150 km da sua cidade natal, Porteirinha, no norte de Minas Gerais. Um terceiro estava por vir na barriga estufada. Na mesa, contas e prestações do imóvel para pagar. Ao lado, o armário de madeira guardava um fichário com nomes de bares e restaurantes da região. O marido, Antônio Lima, da mesma idade, vendedor autônomo de uma distribuidora de bebidas, que sempre sustentara a família, estava internado havia três dias em um hospital, depois de sofrer um infarto. Sem reservas financeiras, a pergunta silenciosa de Cíntia foi inevitável: “O que eu vou fazer?”. Desde que se casara, três anos antes, e se mudara de Minas para São Paulo, ela não trabalhava. 

No dia seguinte, com o fichário de clientes do marido debaixo do braço, Cíntia tomou o ônibus e foi batendo de porta em porta para coletar os pedidos dos comerciantes e entregar para a distribuidora, no bairro de Vila Mariana, na Zona Sul da capital paulista. E foi assim todos os outros dias. “Às vezes, compravam de pena de mim”, relembra. Ao fim de cada exaustiva jornada, ela passava no hospital para visitar Antônio e depois tomava dois ônibus de volta para casa. “Ele me perguntava como eu estava me virando e eu dizia que minha família estava mandando dinheiro”, conta. Após 30 dias, o marido melhorou e o dinheiro das vendas também entrou. Foi quando ela contou que estava trabalhando. Ele chorou. 

Com um marca-passo no peito e ciente da frágil saúde, Antônio resolveu voltar para Minas. Mas, em vez de Porteirinha, escolheu a vizinha Montes Claros para fixar residência. Vieram mais dois meninos. O marido de Cíntia passou a trabalhar nas redondezas da capital mineira fazendo o que sempre lhe garantiu o sustento: vendendo bebidas. Certo dia, ao retornar de Belo Horizonte para casa, ele passou mal ao volante e morreu em um acidente. 

Aos 30 anos, viúva, sem pensão e com quatro filhos entre um e sete anos, Cíntia se perguntou de novo, quando voltou do enterro do marido: “O que vou fazer?”. O único dinheiro que tinha era um resíduo das comissões que recebeu da firma de Antônio. Sem conseguir pagar as prestações, o casal havia perdido o imóvel de São Paulo, em uma época em que o saldo devedor subia mais que o valor de avaliação da moradia. O carro, sem seguro, tinha ficado espatifado na estrada. Mas ela tinha uma certeza: “Meus filhos serão sustentados por mim”. Naquele momento, Cíntia ainda não fazia a menor ideia de como colocaria comida na boca das quatro crianças, mas já tinha se tornado mais uma chefe de família. 

SobrecargaEstudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), intitulado “Investigando a chefia feminina de família”, mostra que 17,3% dos lares brasileiros são comandados por mulheres. Em metade deles, elas dividem as responsabilidades com os companheiros ou são solteiras. A outra metade é liderada apenas por uma pessoa do sexo feminino, que vive sozinha com a prole. Nesses casos, muitas mulheres saem da casa antes de o sol nascer, viajam pelo menos duas horas de ônibus para chegar ao trabalho e, ao fim do mês, levam para casa apenas um salário mínimo, de R$ 545, que mal dá para encher a despensa de alimentos. Em casa, mesmo esgotadas, cumprem a missão mais importante do dia, a de dar atenção às crianças que as aguardam ansiosas. Eles não têm a mínima noção da sobrecarga que recai sobre os ombros dessas trabalhadoras que mal têm tempo de cuidar de si. 

Não à toa, as pesquisadoras do Ipea Natália Fontoura e Cláudia Pedrosa apontam, no estudo, o que elas denominam de “feminização da pobreza”. As famílias lideradas por mulheres têm renda inferior à das chefiadas por homens. Muitas foram abandonadas sem nem sequer saber o motivo ou se tornaram viúvas precocemente. A ausência de um cônjuge limita ainda mais as fontes de renda dos lares. 

Esse parecia ser o destino traçado para a mineira Cíntia, chefe de família com filhos. Sem cônjuge. E pobre. Mas a vida reservou sorte melhor àquela mulher sozinha, com quatro crianças debaixo dos braços. Com muita determinação, coragem e o dinheiro das comissões do marido morto foi até Ibitinga, em São Paulo, comprar roupas de cama para revender em Montes Claros. Vendeu tudo. Com o dinheiro da entrada dos clientes voltou à cidade paulista, levando nas malas doces e queijos para os lojistas. Dessa vez, voltou com o dobro de mercadorias. “Aceitaram meu cheque para 30 dias”, lembra. 

E assim, levando mais doces e queijos, foi triplicando, quadruplicando a quantidade de roupas adquirida toda vez que ia a São Paulo abastecer suas malas, sempre conseguindo prazo maior para pagar as faturas. Em 15 dias, vendia tudo em Montes Claros. Sempre de porta em porta dos clientes. A pé. O dia todo, às vezes só com um cafézinho no estômago. “Era sacoleira.” Mas os filhos estavam comendo do bom e do melhor. E estudando.

Lanchonete“Vou abrir um comércio”, planejou Cíntia, depois de um ano andando pela cidade com sacolas nos ombros. Alugou um ponto onde funcionava uma pequena lanchonete e colocou os filhos numa escola perto. Vendia lanches, biscoitos, bolos, pastéis. Tudo feito na hora. Foi um sucesso. Resolveu servir porções de farofa, feijão com linguiça. A clientela se empolgou e quis refeição completa. Um dia, ela serviu o almoço que preparara para os filhos. “Eu vendi a comida deles, acredita?”. Teve que fazer outra boia correndo, pois eles estavam chegando da escola. No dia seguinte, os clientes quiseram de novo. E ela vendeu mais uma vez o almoço das crianças. E a correria se repetiu. Foi quando pensou: “Esse negócio de vender comida é muito bom”. 

E cada vez mais vendendo refeições, Cíntia foi levando a vida, com os meninos dormindo debaixo das mesas da lanchonete até o fim da tarde, quando sua ajudante os levava para casa. Mas ela seguia trabalhando até meia-noite, até uma hora da manhã, servindo moela, rabada, costelinhas de porco, carne de sol com mandioca… Sabia dos compromissos que teria de arcar no fim do mês. Só de pensar na possibilidade de faltar algo para os filhos, sentia arrepios na alma. Apesar de todo o esforço, em um ano e meio sofreu um novo baque. Com inveja, o dono do imóvel lhe pediu o ponto. Seu bar ao lado estava sofrendo com a concorrência da comida de Cíntia. O negócio dele tinha que ser preservado. Ela que fosse tentar garantir o sustento da família em outra freguesia.

Cíntia não desanimou. Determinada a morar e a ter negócio em um bairro bacana de Montes Claros, alugou a casa ao lado do ponto em que funcionava a lanchonete e montou novamente o seu bar. “Foi melhor do que o outro, mais sofisticado, de esquina, com árvores em volta”, relembra. No primeiro dia, já lotou. Do dinheiro que passou a entrar diariamente no caixa, separava o das despesas da família e poupava o máximo que podia. Um tempo depois, decidiu que seria dona daquele terreno. Com os filhos em escola particular, trabalhando de sol a sol e economizando sempre, conseguiu comprar o imóvel. Precisou, porém, vender o Voyage que havia arrematado com tanto esforço. Poupou mais e juntou o dinheiro da ampliação da casa e do bar. 

BrasíliaDepois de tanto sufoco, de muito aperto, de jornadas diárias de trabalho de até 15 horas, a vida da família estava confortável quando a filha mais velha passou no vestibular em Brasília. A mãe resolveu se mudar para o Planalto Central. Sem qualquer possibilidade de se separar do primeiro rebento, arrendou o negócio em Minas e foi trabalhar como gerente de um restaurante no centro da capital do país. Logo depois, montou o próprio negócio, um self-service que batizou de Talher de Minas, na Asa Norte. No início, morava com a família e a assistente Maria Helena no subsolo do estabelecimento. Era um amontoado, mas cheio de esperança. Já fixada na cidade e com o restaurante começando a dar lucro, comprou um apartamento nas quadras 400 do bairro, para ficar mais perto do trabalho. 

Nesse meio tempo, realizou o sonho de ter uma caminhonete Hilux, que consumiu a economia de quase toda uma vida. Mas, um ano depois, preferiu trocar o veículo por uma quitinete. Ciente da dureza para ganhar dinheiro, percebeu que, no seu dia a dia, não havia espaço para esbanjamento. “A caminhonete desvalorizava e consumia muito dinheiro com combustíveis, taxas e manutenção”, justifica. 

A vida de Cíntia tem se dividido entre o trabalho e os filhos. Nunca tirou férias. O máximo de descanso foi uma semana. Hoje, aos 56 anos, com os quatro meninos com curso superior e pós-graduação, ela continua a chefe da família e labutando o dia todo. Os planos de renovação já começam, contudo, a fervilhar em sua cabeça. Quer, porque quer, morar em Caldas Novas, em Goiás. Tanto que já está construindo uma casa naquela cidade para a assistente de todas as horas Maria Helena. Em breve, planeja ter a sua. Ela jura que vai trabalhar menos. “Estou cansada”, suspira. Que ninguém se surpreenda com um restaurante da Cíntia na cidade goiana. É da cozinha que vem a sua energia e de onde tirou tudo o que tem.


Pessoa de referência
A expressão chefe de família é usada por tradição, mas, desde 1995, não é aplicada pelo IBGE em suas pesquisas. O instituto introduziu o conceito de “pessoa de referência” em substituição ao de “chefe do domicílio” e transferiu ao respondente a tarefa de nominar a pessoa, homem ou mulher, responsável pelo domicílio. Essa mudança foi um salto importante, pois a noção de chefia, pela cultura dominante, poderia ser mais facilmente atribuída à figura masculina, marido ou pai. O fato de as mulheres terem alcançado, nas últimas décadas, mais escolaridade e aumentado a participação no mercado de trabalho está relacionado ao aumento do número de famílias chefiadas por elas.


Destaques no empreendedorismo
Embora estejam em desvantagem em relação aos homens em alguns indicadores, como no salário recebido e na busca de emprego, as mulheres empreendem tanto quanto as pessoas do sexo masculino. Dados da pesquisa mundial Global Entrepreneurship Monitor, realizada em 60 países, mostram que, em 2010, dos 21,1 milhões de brasileiros considerados empreendedores iniciais — aqueles com negócio de até três anos e meio de vida — 49,3% eram mulheres. Em 2001, elas representavam apenas 29% do total. Em números absolutos, o Brasil, lidera o ranking do levantamento, com 17,5% de sua população considerada empreendedora. A China vem em seguida, com 14,4%.

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